terça-feira, 30 de junho de 2015

Crítica: Divertida mente

Ficha técnica do filme: IMDb

Lembro-me da primeira vez que fui procurar a palavra nostalgia no dicionário Aurélio, o atual avô dos burros. Não conseguia aceitar que aquele conjunto de letras estava relacionado a tristeza, uma vez que eu sentia algo estranhamente reconfortante ao acessar lembranças de um passado remoto. E é nessa complexidade, de sentimentos e descobertas, que a Disney•Pixar nos mostrou seu último filme, divertida mente (inside out) que certamente chega aos cinemas como seriíssimo candidato a entrar no hall de clássicos entre animações.

Dirigido por Pete Docter (Up e Monstros SA), divertida mente é ambientado majoritariamente na cabeça de uma criança, Riley (Dias), onde acompanhamos o dia a dia de suas emoções alegria (Poehler), tristeza (Smith), medo (Hader), raiva (Black) e nojinho (Kaling) que, utilizando um painel, comandam as principais ações da garotinha. Já no começo do longa, Docter se mostra eficiente ao desenhar o cerne do universo construído pela Pixar - basicamente como funciona a “máquina de sentimentos” - nos fazendo acompanhar tanto o crescimento de Riley, de seu nascimento até os onze anos, tempo no qual o filme se passa, quanto a principal trama do longa: o conflito entre tristeza e alegria. [vale lembrar que esse recurso foi bem utilizado pelo diretor também em UP, filme que deveria entrar nos Guinness por longa que faz chorar mais rápido].

Com um roteiro que nos leva a mundo fantástico e irreverente, ajudando a construir um universo que apelidei carinhosamente de “A Origem, para baixinhos”, a animação utiliza bem elementos cotidianos para representar a mente de Riley, desde esferas coloridas touch screen (que nos mostra memórias correspondentes a cada sentimento, fáceis de serem transportadas e visualizadas) até tubulações, que lembram nervos. Sem falar na bela representação de valores por ilhas e na homenagem à sétima arte, tratando o sonho como super produções e o acesso pessoal às memórias como um grande cinema que projeta a imagem que vem a mente da garotinha (Como consequência, temos um lindíssimo plano onde alegria observa, minúscula, uma memória se passar numa tela gigante).

Aliás, a fotografia do filme é competente ao nos mostrar uma São Francisco - lugar de mudança do primeiro para o segundo ato - com uma paleta triste e monocromática, em contraste com as principais memórias da garotinha da cidade natal, Minessota, que apesar de ser mais fria é muito mais alegre para a criança. Notem, também, que o quarto de Riley está constantemente no escuro e é, na maioria das vezes, iluminado somente quando a porta é aberta pelo pai ou a mãe, numa idéia linda da importância dos pais na vida da jovem.

Outro acerto da fotografia é representar um universo que nos mostra diversos “departamentos” de uma mente ainda em construção - não é atoa que tem obra para todo lado - e a importância de cada local, como o quão pequeno ficam as emoções na “prisão de medos” ou o quão triste é o cemitério de memórias (cuja alegria brilha intensamente, mostrando que não pertence de maneira nenhuma ao lugar).

Falando em brilho, a direção de arte também não deixa nada a desejar, criando personagens adequados a suas cores, roupas e atitudes: notem como alegria veste roupas de verão, tristeza de inverno, nojinho é fashion e o medo um nerd cauteloso, enquanto raiva usa roupas tradicionais de trabalho, representando bem o stress. As cores também são muito adequadas, com o amarelo brilhante, o azul, o verde, o roxo e o vermelho, representando a felicidade radiante, o desanimo contínuo, a doença alimentar, a prudência por temor a morte e o puro ódio, respectivamente. Sem falar nas cores da própria Riley que começa o filme com roupas alegres e cheias de vida e termina da cabeça aos pés de preto, não sobrando nem um all star vermelho.

Mas o que mais admira sobre as personagens é a postura de cada um, também muito bem representada pelo o elenco, pouco conhecido em filmes tradicionais. Lane e Maclachlan deram vida a pais amorosos e preocupados, cuja personalidade também é conhecida pelo acesso a suas mentes. E Docter é habilidoso por, com o jogo de câmara, mostrar uma mãe organizada e calma: com todos sentimentos disciplinados e quase sempre num mesmo plano, enquanto o pai, extrovertido e animado, possui a mente bagunçada, representada por diversos planos fechados e cortes.

Além disso, temos Black representando um carrancudo leitor ávido de jornais (aliás, sensacional a idéia de colocar a mídia sensacionalista como fomentadora de ódio); Hader um retraído e assutado medo, que está aparentemente sempre tremendo e Kaling uma típica adolescente cheia de frescura. Mas os grandes destaques do filme ficam por conta de Poehler, que dá lugar a uma alegria impulsiva, otimista e cheia de vida (e observem como ela parece sempre querer dançar ao andar e que sua impulsividade muitas vezes leva a problemas por agir sem pensar) e Smith, uma tristeza desanimada, pesarosa e pessimista que parece nem querer sair do lugar as vezes, mas que, em sua cautela, propõe boas idéias para os desafios presentes.

Misturando alguns clichês, como o medo de palhaço e o brócolis vilão, com idéias criativas do tipo a propaganda chiclete que “gruda” na cabeça e um labirinto de memórias, é na força de todo o conjunto que divertida mente tem seu sucesso: consegue fazer um filme que nos faz refletir sobre a maneira que tratamos nossas próprias emoções, e a importância que cada uma delas tem na nosso modo de viver. E quando não conseguimos nos entender conosco, e nosso painel “dá tilt”, parece que, de certo modo, a vida perde significado e acabamos sendo guiados por um vazio que não tem nenhum sentido ou explicação (e o filme representa isso numa linda sequência, já no terceiro ato).

E quando a tristeza modificou aquelas memórias passadas tão alegres eu não consegui conter um conjunto considerável de lágrimas, pois senti que tinha dado um passo a mais para a compreensão da importância da melancolia no nosso cotidiano, e do porquê, as vezes, estar para baixo tem o seu devido valor (quando estou assim fico muito mais responsável, por exemplo). Afinal, se pensarmos bem, a vida nada mais é do que uma explosão de emoções e, dentre muitas, a tristeza sempre nos faz parar e refletir, adiando tomadas de decisões que deveriam mesmo ficar para outrora.

E se a vida imita a arte, certamente ao sair da sala do cinema uma esfera amarela e azul rolou por dentro da minha mente e minhas emoções, segurando controles de um play station da última geração, viu a criação de mais uma ilha: a da crítica cinematográfica!