domingo, 20 de setembro de 2015

Critica: “que horas ela volta”

“Traz consigo a triste realidade do nosso país, mas um sopro de esperança quando visualizamos que existe um novo mundo mais justo e igual sendo construído"


Ficha técnica: IMDB


Tem spoiler para mais de metro, é quase o roteiro do filme. Portanto, se não viram, não leiam!


Se fosse dirigido por José Padillha, “Que horas ela volta” certamente começaria com uma frase do tipo “apesar das possíveis coincidências esse filme é uma obra de ficção”, dada a  enorme verossimilhança que essa bela obra tem com o ambiente brasileiro apresentado.


Mas, felizmente, Padilha não dirigiu esse filme (com todo respeito a nosso genial diretor) tarefa realizada pela brilhante Anna Muylaert (o ano que meus pais saíram de férias) que, também assinando o roteiro, deu vida a um futuro clássico do cinema nacional. Honestamente, não consigo enxergar melhor sinergia como resultado, já que a minha admiração pelo produto final apresentado por Anna é gigante!


Ambientada em São Paulo, em sua grande maioria numa casa de luxo no Morumbi, “Que horas ela volta” acompanha a história de uma empregada doméstica, Val (Casé), que, abandonou a filha no nordeste para tentar melhor vida na maior cidade do Brasil, como uma espécie de governanta que vive no quartinho dos fundos da casa dos seus patrões.


Logo no começo, podemos acompanhar o dia a dia do trabalho de Val, desde quando o pequeno Fabinho (Lopes) era apenas uma criança que gostava de brincar na piscina até quando o menino é um adolescente (já interpretado por Joelsas) pronto a prestar vestibular. Até que Val recebe uma ligação da filha (Márdila) que precisará ir a São Paulo para também tentar entrar na faculdade, e a empregada não vê outra saída a não ser trazer a adolescente para morar junto de si e dos seus patrões, Bárbara (Teles) e José Carlos (Mutarelli).


É interessante como Muylaert utiliza bem a fotografia e a Mise-en-scene para nos apresentar uma família desunida (reparem que a família elitista é apresentada separadamente, cada um é inserido na narrativa num momento diferente e quando aparecem juntos num plano estão todos no celular sem interagir) e um grupo de empregados unidos que almoçam reunidos e interagem bem entre si. Ali, a diretora já inicia a idéia básica do seu filme: o conflito entre dois mundos diferentes, basicamente pobres e ricos, e como o convívio entre essas duas classes são regidas por dogmas, preconceitos e submissão.


Ainda na fotografia temos um trabalho brilhante que nos traz sistematicamente o ponto de vista da Val e o mundo triste que ela vive, como nos planos em que Casé aparece de costas e quando compartilhamos os lugares comuns da empregada: o corredor escuro e apertado da família; a cozinha; a região da piscina e o quartinho dos fundos (mais uma prisão, mostrada por um plano mostrando as grades da janela). Já a direção de arte é eficiente ao demonstrar uma empregada uniformizada no passado e, no futuro, já mais a vontade em casa, utilizando roupas velhas doadas pelos patrões, exceto quando tem alguma ocasião especial e os donos da casa precisam mostrar que ela é, na verdade, uma serviçal.


Sobre as atuações, é gratificante ver a ótima atuação da Regina Casé que traz uma simplicidade enorme a sua personagem, que demonstra uma ingenuidade incrível sobre o mundo que a envolve. Com expressões bem suaves, e com uma sensibilidade enorme, Casé dá vida a uma personagem amável e simples, que acredita ser predestinada a servir uma família pois as pessoas já “nascem sabendo” que é assim. Isso nos aproxima da empregada, uma vez que, tendo muita proximidade com o ambiente dela, conhecemos pouco o mundo dos patrões, já que mal vemos seus quartos e o resto da casa (aqui uma observação interessante: num certo momento, podemos ver que a casa é enorme através da análise de sua planta, e que a empregada Val mora na parte “inferior” da residência).


Ademais, fica difícil nutrir pelos patrões da empregada alguma simpatia, a medida que vamos conhecendo-os. Enquanto Bárbara é uma típica socialite que demonstra seus preconceitos em pequenos gestos - como falar em Inglês para empregada não entender, desdenhar do perfume da mesma e desacreditar que uma nordestina não passe no vestibular - Fabinho se demonstra um adolescente mimado, preguiçoso e invejoso (embora seja mais fácil nutrir por ele algum carinho graças a sua proximidade com a  Val). Temos também um pai, José Carlos, moroso e machista que vive se arrastando como uma tartaruga (e um corte no filme deixa isso bem claro), tendo que beber guaraná a toda hora para ter alguma energia para falar e andar, acha que tudo vai vir de mão beijada (até um casamento!!) e que vive praticamente por inércia pois herdou uma gorda herança e nunca precisou trabalhar.


Inserindo na narrativa uma personagem que não obedece às “regras” praticadas na casa e, portanto, traz consigo um desequilibrio nas relações empregados/patrão há tempos praticadas na casa, Muylaert coloca em confronto dois mundos (que comentarei em tópico separado mais a frente), colocando em cheque máximas ou axiomas que levamos conosco para justificar ações extremamente anti-éticas como manter sobre cativeiro funcionários em regime de semi-escravidão.


[ALERTA MASTER DE SPOILER]


E, nesse sentido, “que horas ela volta” é um filme completo onde cada função consegue, com graciosidade e inteligência, trazer reflexões consideráveis acerca da realidade complexa e coerente em que a história está inserida. Por isso, quando ouvimos Val dizer que o largo da Batata TINHA mais nordestino que o nordeste, ou mesmo, Bárbara falar, com desgosto, “esse país esta mudando mesmo”, sabemos que estamos observandos dois mundos diferentes que estão prestes a dividir, cada vez mais, o mesmo espaço. Por isso, é sensacional observar uma protagonista que descobre como o mundo que a envolve agora é outro quando põe no varal uma blusa preta (diferentemente no começo do filme, onde tudo era branco) e se vê pronta para recomeçar uma vida com escolhas diferentes, dentro da nova realidade que ela agora consegue enxergar. E se, outrora, ela foi vista andando apertada em ônibus lotados, vivendo num quarto cuja janela abre para dentro de uma casa, já no fim a mesma termina no banco de trás de um carro, com o rosto feliz sentindo a brisa vinda na janela e numa casa que tem uma janela que a permite ver o mundo exterior.


A piscina, o sorvete, as mães e o jogo de xícaras: o exemplo dos dois diferentes mundos


Muylaert utiliza símbolos de conflitos entre os dois mundos vividos no filme para nos fazer questionar o senso comum ao qual estamos inseridos.


Por exemplo, os dois tipos de sorvetes que temos disponíveis na casa: um tradicional, sem embalagem e que nem sabemos o sabor e um outro num pote arrojado, com embalagem, de um especial chocolate com amêndoas. Reparem como Val, a empregada, tem como certeza que ela não pode comer o sorvete rico “de Fabinho”, mesmo sendo “quase da família”. Já Jéssica, que não compactua do mesmo dogma, uma vez que prova do doce sofisticado, não consegue mais não comê-lo  mesmo que tenha que fazer escondido, numa grande metáfora de que as gerações futuras não aceitarão mais o retrocesso de ter que viver com o pior.


A piscina é um espaço aparentemente comum, que tem lugar para todos, mas que não pode ser utilizado pelo mundo dos pobres. E é através dessa piscina que Anna demontra uma quebra de paradigma por parte da Val que, uma vez que a vê quase vazia enxerga ali a oportunidade de participar de um mundo que ela sabe que não é seu, mas que ela tem direito de estar e gozar daquele privilégio (e essa descoberta rende uma bela sequência no filme). E, é claro, destaca-se a repulsa que a Bárbara tem ao saber que alguém de o mundo diferente do dela está usando a piscina, comparando essas pessoas a ratos.


Bárbara e Val são mães que abriram mão de conviver com seus filhos na infância, por escolhas diferentes - e não é atoa que a frase “que horas ela volta” é atribuída às duas. Enquanto Val, a mãe pobre que abandonou a filha para sustentá-la, abre mão de toda a sua vida para voltar a viver junto da filha e do neto, Bárbara, a mãe rica que deixou o filho de lado exclusivamente pela carreira, escolhe enviar o filho para mais longe ainda, um intercâmbio, quando o mesmo sofre uma frustração de não passar no vestibular. Duas mães, dois abandonos e para cada mundo uma consequência diferente.


E o jogo de xícaras talvez seja a grande sutileza da diretora, mostrando os dois mundos misturados e como um deseja participar e o outro quer ficar quietinho, na boa, sem querer dividir espaço. Reparem que da primeira vez que o jogo é apresentado, tanto Bárbara quanto Val estão vestidas de preto e branco (como uma xícara e um pires do conjunto) e a dona da casa, fashionista, ainda diz numa entrevista algo do tipo “você é o que você veste”. Quando a empregada tenta inserir essa novidade ao mundo dos ricos, na festa da patroa, é prontamente tolhida e recebe como resposta “esse não, utilize o conjunto sueco de madeira branca (veja bem, branco!)”, ou seja, esse aqui é o mundo dos ricos, não me venha com nada misturado que não aceitaremos. E é belíssimo ver a cena onde Val tenta entender como vai ser esse mundo onde as diferentes cores vivem juntas (não entra na cabeça dela tal loucura), até que, ao final, ela demonstra ter entendido aquilo na fala “esse aqui é diferente, que nem tu [Jéssica]. É preto com branco, branco com preto, tudo misturado” deixando claro que a geração da filha viverá num mundo mais homogêneo que o dela.


O Lulismo estampado em “que horas ela volta”


Se Anna der uma entrevista dizendo que chamou o presidente Lula para ajudar a construir o roteiro, eu acreditaria na hora. Isso porque o filme traz jargões clássicos do metalúrgico, que ilustram bem o conflito existente quando os dois mundos, tão bem separados no passado, passam a dividir o mesmo espaço. São esses:


  1. Hoje pobre anda de avião: na cena que Val vai buscar sua filha, se nota claramente a disparidade entre ela, uma empregada perdida no aeroporto, e um homem ao seu lado segurando uma placa, o qual deduzimos ser o motorista de uma garota loira e branca chamada Aline Bonamin. Ainda, temos também uma fala da Regina Casé enfatizando a importância de se buscar alguém “de avião” como se aquilo fosse um prêmio a toda a dedicação que ela teve na vida.
  2. A empregada agora usa o perfume da patroa, mesmo que falso: Num plano no começo do filme, podemos ver no criado mudo ao lado da cama da Val, um perfume com cara daquelas imitações das fragrâncias tradicionais. Quando Bárbara percebe que Val usara um perfume, para sair determinado momento, a mesma faz questão de desdenhar do mesmo, sacudindo o ar e tapando o nariz com uma toalha. Ademais, temos a cena da outra empregada, Edna, feliz ao mostrar um perfume novo para sua amiga Val.
  3. A filha da empregada hoje é arquiteta: essa é bem autoexplicativa… Atualmente, graças a uma educação que vem melhorando e um sistema de inclusão mais eficaz, cada vez mais cidadãos de baixa renda, que eram obrigados a viver com um subempregos, tem a possibilidade de sonhar com trabalhos outrora praticados apenas pela elite. Detalhe: é ótimo como Muylaert crítica a educação tradicional atribuindo a um professor de história (não de português e nem de matemática) que desenvolve o senso crítico mediante “grupos de teatro” a responsabilidade pelo triunfo da Jéssica.

terça-feira, 30 de junho de 2015

Crítica: Divertida mente

Ficha técnica do filme: IMDb

Lembro-me da primeira vez que fui procurar a palavra nostalgia no dicionário Aurélio, o atual avô dos burros. Não conseguia aceitar que aquele conjunto de letras estava relacionado a tristeza, uma vez que eu sentia algo estranhamente reconfortante ao acessar lembranças de um passado remoto. E é nessa complexidade, de sentimentos e descobertas, que a Disney•Pixar nos mostrou seu último filme, divertida mente (inside out) que certamente chega aos cinemas como seriíssimo candidato a entrar no hall de clássicos entre animações.

Dirigido por Pete Docter (Up e Monstros SA), divertida mente é ambientado majoritariamente na cabeça de uma criança, Riley (Dias), onde acompanhamos o dia a dia de suas emoções alegria (Poehler), tristeza (Smith), medo (Hader), raiva (Black) e nojinho (Kaling) que, utilizando um painel, comandam as principais ações da garotinha. Já no começo do longa, Docter se mostra eficiente ao desenhar o cerne do universo construído pela Pixar - basicamente como funciona a “máquina de sentimentos” - nos fazendo acompanhar tanto o crescimento de Riley, de seu nascimento até os onze anos, tempo no qual o filme se passa, quanto a principal trama do longa: o conflito entre tristeza e alegria. [vale lembrar que esse recurso foi bem utilizado pelo diretor também em UP, filme que deveria entrar nos Guinness por longa que faz chorar mais rápido].

Com um roteiro que nos leva a mundo fantástico e irreverente, ajudando a construir um universo que apelidei carinhosamente de “A Origem, para baixinhos”, a animação utiliza bem elementos cotidianos para representar a mente de Riley, desde esferas coloridas touch screen (que nos mostra memórias correspondentes a cada sentimento, fáceis de serem transportadas e visualizadas) até tubulações, que lembram nervos. Sem falar na bela representação de valores por ilhas e na homenagem à sétima arte, tratando o sonho como super produções e o acesso pessoal às memórias como um grande cinema que projeta a imagem que vem a mente da garotinha (Como consequência, temos um lindíssimo plano onde alegria observa, minúscula, uma memória se passar numa tela gigante).

Aliás, a fotografia do filme é competente ao nos mostrar uma São Francisco - lugar de mudança do primeiro para o segundo ato - com uma paleta triste e monocromática, em contraste com as principais memórias da garotinha da cidade natal, Minessota, que apesar de ser mais fria é muito mais alegre para a criança. Notem, também, que o quarto de Riley está constantemente no escuro e é, na maioria das vezes, iluminado somente quando a porta é aberta pelo pai ou a mãe, numa idéia linda da importância dos pais na vida da jovem.

Outro acerto da fotografia é representar um universo que nos mostra diversos “departamentos” de uma mente ainda em construção - não é atoa que tem obra para todo lado - e a importância de cada local, como o quão pequeno ficam as emoções na “prisão de medos” ou o quão triste é o cemitério de memórias (cuja alegria brilha intensamente, mostrando que não pertence de maneira nenhuma ao lugar).

Falando em brilho, a direção de arte também não deixa nada a desejar, criando personagens adequados a suas cores, roupas e atitudes: notem como alegria veste roupas de verão, tristeza de inverno, nojinho é fashion e o medo um nerd cauteloso, enquanto raiva usa roupas tradicionais de trabalho, representando bem o stress. As cores também são muito adequadas, com o amarelo brilhante, o azul, o verde, o roxo e o vermelho, representando a felicidade radiante, o desanimo contínuo, a doença alimentar, a prudência por temor a morte e o puro ódio, respectivamente. Sem falar nas cores da própria Riley que começa o filme com roupas alegres e cheias de vida e termina da cabeça aos pés de preto, não sobrando nem um all star vermelho.

Mas o que mais admira sobre as personagens é a postura de cada um, também muito bem representada pelo o elenco, pouco conhecido em filmes tradicionais. Lane e Maclachlan deram vida a pais amorosos e preocupados, cuja personalidade também é conhecida pelo acesso a suas mentes. E Docter é habilidoso por, com o jogo de câmara, mostrar uma mãe organizada e calma: com todos sentimentos disciplinados e quase sempre num mesmo plano, enquanto o pai, extrovertido e animado, possui a mente bagunçada, representada por diversos planos fechados e cortes.

Além disso, temos Black representando um carrancudo leitor ávido de jornais (aliás, sensacional a idéia de colocar a mídia sensacionalista como fomentadora de ódio); Hader um retraído e assutado medo, que está aparentemente sempre tremendo e Kaling uma típica adolescente cheia de frescura. Mas os grandes destaques do filme ficam por conta de Poehler, que dá lugar a uma alegria impulsiva, otimista e cheia de vida (e observem como ela parece sempre querer dançar ao andar e que sua impulsividade muitas vezes leva a problemas por agir sem pensar) e Smith, uma tristeza desanimada, pesarosa e pessimista que parece nem querer sair do lugar as vezes, mas que, em sua cautela, propõe boas idéias para os desafios presentes.

Misturando alguns clichês, como o medo de palhaço e o brócolis vilão, com idéias criativas do tipo a propaganda chiclete que “gruda” na cabeça e um labirinto de memórias, é na força de todo o conjunto que divertida mente tem seu sucesso: consegue fazer um filme que nos faz refletir sobre a maneira que tratamos nossas próprias emoções, e a importância que cada uma delas tem na nosso modo de viver. E quando não conseguimos nos entender conosco, e nosso painel “dá tilt”, parece que, de certo modo, a vida perde significado e acabamos sendo guiados por um vazio que não tem nenhum sentido ou explicação (e o filme representa isso numa linda sequência, já no terceiro ato).

E quando a tristeza modificou aquelas memórias passadas tão alegres eu não consegui conter um conjunto considerável de lágrimas, pois senti que tinha dado um passo a mais para a compreensão da importância da melancolia no nosso cotidiano, e do porquê, as vezes, estar para baixo tem o seu devido valor (quando estou assim fico muito mais responsável, por exemplo). Afinal, se pensarmos bem, a vida nada mais é do que uma explosão de emoções e, dentre muitas, a tristeza sempre nos faz parar e refletir, adiando tomadas de decisões que deveriam mesmo ficar para outrora.

E se a vida imita a arte, certamente ao sair da sala do cinema uma esfera amarela e azul rolou por dentro da minha mente e minhas emoções, segurando controles de um play station da última geração, viu a criação de mais uma ilha: a da crítica cinematográfica!